sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Do outro lado do rio

          Noite dessas, ao me preparar para dormir, deitei-me na cama e liguei o rádio do celular a fim de ouvir um pouco de música para dar sono, como faço às vezes. Com tantas músicas repetidas e grudentas tocando já estava prestes a desligar, quando começou a tocar uma melodia que me pareceu bem familiar, os primeiros acordes de violão que embalavam uma canção suave, seguida por aquela voz calma e quase sussurrada cantada num castelhano latino-americano. Logo identifiquei, era uma música chamada “Al Otro Lado Del Río” de um compositor uruguaio chamado Jorge Drexler. Talvez você, leitor, nunca tenha ouvido falar deste compositor e muito menos ouvido esta música - ou pelo menos não se lembre. Mas o que pouca gente conhece mesmo é a história de discriminação seguida de uma reviravolta triunfal que houve por detrás dela. História que já tem aguns anos, mas que está gravada na minha memória como se tivesse ocorrido semana passada. Para aqueles que se lembram, convido-os a compartilharem desta lembrança, e para aqueles que não sabem da história vou contá-la a vocês.
Aconteceu que esta canção foi composta por Drexler para a trilha sonora do filme Diários de Motocicleta a pedido do diretor do filme, o brasileiro Walter Salles. Diários de Motocicleta narra a viagem do jovem Ernesto “Che” Guevara junto à um amigo pela América do Sul antes de Che se tornar o lendário revolucionário que foi. O filme fez sucesso entre os críticos de Hollywood e sua canção tema foi indicada ao Oscar de melhor canção junto à outras quatro músicas de outras películas do mesmo ano.
Foi uma festa para os envolvidos na produção do filme e principalmente para o compositor Jorge Drexler, que viu sua arte ser reconhecida a nível mundial e mal podia esperar para cantar sua música na festa do Oscar daquele ano, pois como ocorre todo ano, as músicas concorrentes ao prêmio são cantadas ao vivo para o público durante a premiação. Porém a Alegria logo se tornou decepção, pois os organizadores do evento haviam informado que Drexler não iria interpretar sua canção por não ser “um rosto conhecido” nos Estados Unidos, onde há a maior repercussão do Oscar. Ao invés dele, quem iria apresentar a música “Al Otro Lado Del Río” durante a premiação seria o conhecido ator espanhol Antônio Banderas e o famoso guitarrista mexicano-americano Carlos Santana.
Houve uma grande polêmica no meio cinematográfico, e eu acompanhava, semanas antes da premiação, as reportagens nos jornais que tratavam o caso como “O cantor vetado pelo Oscar”. A história gerou muito protesto nos dias que antecederam a premiação, muitos atores e representantes do meio artístico protestaram contra a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, entre eles o ator veterano Robert Redford, produtor de Diários de Motocicleta, que enviou um manifesto à organização para que o compositor uruguaio cantasse sua canção, pois essa era a única coisa que ele queria. O ator Gael Garcia Bernal, que interpretou “Che” no longa, disse que não compareceria à premiação em protesto contra a decisão. Mas os organizadores do Oscar foram inflexíveis, se limitando a permitirem que Drexler fosse à premiação e recebesse o prêmio “caso” a canção vencesse.
Na noite da festa do Oscar, lá estavam todos os artistas e famosos de Hollywood em seus impecáveis trajes de gala. Lá estavam Antônio Banderas e Carlos Santana interpretando uma versão Rock-tourada-desastrosa de Otro Lado Del Río. Lá estava também Jorge Drexler em seu assento, estava quieto, acanhado e com a mágoa transparente em seus olhos, como de um garoto que foi proibido de abrir seu presente na noite de Natal e ainda teve que assistir a outra pessoa rasgando o embrulho e recebendo os aplausos, se limitando a dar alguns sorrisos acanhados para a camera e engolindo em seco. E lá estava eu, no sofá de casa, assistindo tudo ao vivo, compartilhando a mesma mágoa e angústia de Drexler. Ele estava desapontado pois fora proibido de cantar sua canção na festa mais importante do cinema e que possivelmente não teria outra chance como aquela na vida. Estava claro ver isso em seus olhos.
Então chegou o momento da premiação de melhor canção original, o cantor Prince foi o encarregado de anunciar o vencedor. Primeiramente citou os indicados para o prêmio, todos fortes concorrentes, e então anunciou o vencedor daquele ano. O Oscar iria para... “Jorge Drexler, por Otro Lado Del Río”. Ninguém acreditou. Foi uma explosão de aplausos e gritos. Em alguns segundos um agora feliz-da-vida Drexler já estava subindo ao palco com um sorriso de orelha a orelha recebendo a estatueta dourada das mãos de Prince. Ao receber o prêmio, fez uma reverência e beijou a mão do astro pop que se retirou e deixou o púlpito apenas para o vencedor do Oscar. Os aplausos diminuíram até fazer um silêncio absoluto e todos esperavam para ouvir o que ele tinha a dizer. Drexler fez a única coisa que ele ansiava fazer aquela noite, algo mais importante para ele do que receber o prêmio, algo que eu nunca irei esquecer na minha vida inteira. Ele se curvou até o microfone e começou a cantar: Clavo mi remo en el agua, Llevo tu remo en el mío, Creo que he visto una luz al otro lado del río/El día le irá pudiendo poco a poco al frío, Creo que he visto una luz al otro lado del río” em siguida apenas disse “tchau” agradeceu e retornou de cabeça erguida para o seu assento. Naquele momento a estatueta se tornou um mero detalhe em suas mãos, pois o que importava para ele era ter cantado, pelo menos um trecho, de sua canção na festa do Oscar e ser ouvido por milhões de pessoas ao redor do mundo. Gostaria de ter visto as caras dos diretores da academia que vetaram sua apresentação e quase tiraram dele uma das maiores emoções que teria na vida. Jorge Drexler foi o grande vencedor daquela noite.
Daqui há muitos anos, quando eu for velho, e por um acaso ouvir essa canção tocando no rádio, sempre me lembrarei da vez em que um homem foi proibido pelos poderosos de representar sua arte, de fazer aquilo que ele mais amava fazer na vida. Me lembrarei que ele deu a volta por cima, recebeu o reconhecimento merecido e, contrariando todas as apostas, conseguiu representar sua arte para todos aqueles que pudessem apreciá-la. Essa história serviu para mostrar que os discriminados e oprimidos também têm sua chance de vitória, de glória, de dar a volta por cima. Naquela noite quem cantou por último, cantou muito melhor. Essa história serve de esperança para muitos. Como diz num trecho da canção: “Nem tudo está perdido”. A partir daquele dia também sempre passei a ver uma luz do outro lado do rio.

Um comentário:

Alex Xavier disse...

Grande artigo. Inspirador. Você escreve muito bem. Consegue efetuar uma aura de drama, até o narrador aparece num sofá no meio da estória.