sábado, 26 de novembro de 2011

Tinha uma pedra no meio do caminho

          Eram 8:40 da manhã. Estava voltando do centro, indo para o trabalho de moto, acabava de entrar na última avenida antes de chegar ao meu destino. Eu pensava no horário de almoço, momento em que eu levaria os documentos à imobiliária, exatamente ao meio-dia. Já estava tudo planejado na minha cabeça, eu entregaria à funcionária, ela iria conferir e assinar, me entregaria as chaves do apartamento e eu sairía de lá assoviando e sorrindo por tudo sair como eu planejei. E estava tudo programado, como um relógio. "Ah, seres humanos ignorantes que 'pensam' que tem o controle de alguma coisa em suas vidas insignificantes. Quando vocês irão aprender?", seria o meu pensamento no dia seguinte, mas neste instante, eu estava cantarolando alguma música alegre no meu subconsciente.
          Me vi neste momento logo atrás de um ônibus e já me preparava para ultrapassá-lo. Olhei pelo retrovisor, a passagem da esquerda estava livre, só havia um carro escuro há alguns metros atrás de mim cujo motorista provavelmente aguardava que eu também ultrapassasse o ônibus. Dei seta para a esquerda e começava a iniciar a ultrapassagem. Foi então que ela surgiu, e mudou tudo!
          Não me lembro se estava parada ou se veio rolando. Provavelmente estava parada. Imóvel. Esperando por mim. Lembro de ter arregalado os olhos e reparado bem nela. De como ela era do tamanho de um tênis do tamanho 45, de como sua forma lembrava ligeiramente a forma de uma pirâmide, com uma ponta voltada para o céu. De tentar estimar o peso dela, e que não consegui estimar. Mas tive tempo o bastante para imaginar que na "briga" entre ela e o pneu da minha moto, a moto não teria a menor chance. E um pensamento muito triste cruzou a minha mente logo após essa constatação: "Então é isso Deus? É aqui que acaba? Desse jeito?" Não houve resposta. "Eu imaginei que pudesse ser assim, mas não agora. Tudo bem então." Tudo isso me passou pela cabeça no único segundo que durou entre ela surgir surpreendentemente debaixo daquele ônibus e tocar em cheio a roda dianteira da minha moto. Neste momento, em que ela encostou na roda da moto, foi como se o mundo inteiro parasse pra me olhar, podia sentir todas as pessoas voltando os olhos para aquela cena,  boquiabertos, pra ver o que iria me acontecer. Mas então percebi que não foi o mundo que parou. Foi a moto. Uma parada brusca a quase 70 km por hora. Dá para imaginar o que acontece não é? Exatamente. Fui lançado de cima da moto direto ao asfalto. Não sei dizer ao certo qual parte do meu corpo tocou primeiro o chão. Mas pela avaliação que fiz mais tarde, posso apostar que tenha sido o meu joelho direito, e em seguida  meu braço e cotovelo direito, depois ombros, costas e quadril.
          Lembro de ter gritado enquanto rolava no chão. NÃO, NÃO, NÃO! Foi como gritei. E 10 segundos depois eu estava estirado perto da guia direita da via. O primeiro sentimento que tive, foi o de raiva. Raiva da pedra, do ônibus, de mim mesmo. Estirado ali, já com as primeiras pontadas de dor, tive força o suficiente pra esmurrar o chão e gritar enraivecido, mais de uma vez: "Que droga!" Então virei de costas, com muita dor e olhei para o céu, estava azul, sem nenhuma nuvem. E o céu olhou de volta para mim, com pena. Minha respiração estava ofegante e eu tentava conter os gemidos de dor.
Minhas roupas haviam rasgado em várias partes, parecia que um cachorro pitbull havia me pego para brincar e dado a volta comigo pelo quarteirão me arrastando antes de me deixar ali.
         - Amigo, você está bem? - O motorista do carro logo atrás, se ajoelhou próximo a mim e me deu o primeiro atendimento - Não se mexe muito, fique assim.
        Eu balencei a cabeça afirmativamente e dizia:
         - Tudo bem. 
        Mas eu não dizia para ele, eu dizia para mim mesmo. Era a minha voz, minha boca se movendo, mas não era eu. Sei disso porque a próxima frase que saiu, com muito custo foi: "Tá tudo bem Lucas, já passou. Tá tudo bem." Eu assenti com a cabeça e uma lágrima escorreu pelos meus olhos.
        A hospitalidade humana é um instinto incrível, quando me dei conta estava cercado de rostos que nunca havia visto antes. Mas que pararam para me ajudar, se atrasaram para seus trabalhos, perderam minutos preciosos do seu dia para me ajudar. Lembro de um jovem magro e moreno que se ofereceu para ligar ao meu chefe avisando o que tinha ocorrido. De uma jovem de cabelos compridos que ficou  na minha frente, com um rosto de preocupação e parecia rezar por mim. De um rapaz de cavanhaque que retirou minha moto do meio da via e eu sabia que conhecia de algum lugar. E um outro de camisa branca e óculos escuros que minutos depois daria uma aentrevista ao jornal local relatando o ocorrido, era ele que mais falava comigo.
        - Fica calmo amigão. O resgate já deve estar chegando.
       Ouvi um comentário de duas pessoas logo atrás de mim, um deles falou:
       - Foi naquela pedrona ali que ele bateu, apareceu do nada.
       A pedra! Me lembrei da pedra. Tentei olhar para trás pra ver se eu a enxergava. Ao invés disso me deparei com a minha moto, já em pé, com as lanternas quebradas e a frente toda amassada, ela parecia me olhar com tristeza.
         - Ah não. - foi o que eu disse ao ver a minha amiga "machucada" daquele jeito.
         Pedi para que alguém pegasse a pedra pra mim. Não sei ao certo por que fiz isso, só sei que eu queria ela comigo. O rapaz de cavanhaque logo se dispôs e recolheu ela, colocando na guia perto de mim. Mais uma vez pude dar uma olhada bem de perto nela. Concerteza ela parecia ter levado a melhor entre nós três. Poucos minutos depois o resgate chegou, fui atendido prontamente pelos bombeiros que realizaram a primeira avaliação e constataram que apesar da pancada eu não havia quebrado nenhum osso, mas que o meu joelho etava bem feio. Meu chefe apareceu no mesmo instante, ficando com os meus pertences e com a moto. E então fui encaminhado para o posto de saúde mais próximo.
         Esperando pelo atendimento no pronto-socorro, entre lágrimas e sorrisos, comecei a lembrar de um filme do diretor Danny Boyle que havia assistido há pouco tempo. Chama-se 127 Horas e retrata um acidente ocorrido com o jovem americano Aaron Rolstom, que praticava montanhismo sozinho numa região desértica de Utah, e ao descer por uma fenda tem seu braço prensado por uma rocha, deixando ele preso lá sozinho sem nenhuma ajuda por perto e sem nenhuma esperança de ser resgatado, pois niguém sabia onde ele estava. O que essa história teria a ver comigo? Uma rocha. Uma pedra! Reconheço que a pedra de Aaron era 30 vezes maior do que a minha e que as consequencias do acidente dele foram infinitamente piores do que os meus ralados e contusões. Mas me lembrei que em certo momento do filme, após cinco dias preso àquela rocha, Aaron começa a repensar sua vida inteira e percebe que todas as suas ações contribuiram para ele chegar àquele lugar, e que assim deveria ter sido. Faço dele minhas palavras, que transcrevi da que pra mim, representa a principal cena do fime: "Agora tudo faz sentido. (...) Esta pedra esperou por mim, a minha vida toda. A vida dela toda. (..) Ela estava esperando pra vir bem aqui. E eu caminhei em direção a ela o tempo todo."
         É estranho você pensar que um acidente pode fazer bem a você. Afinal de contas, passei a andar com dificuldade e não consegui dobrar o joelho por vários dias. Mas foi exatamente o que me aconteceu. Os felizes acontecimentos que ocorreram após o acidente, não teriam como ter acontecido se não fosse por aquela pedra. Aquela pedra fez toda a diferença na minha vida. Só eu sei disso.
         Já em casa, me recuparando, cuidando dos meu ferimentos me peguei começando a rir, e o riso se transformou em gargalhada. E essa gargalhada fez todo sentido quando olhei para o meu joelho, e relembrando tudo o que havia passado durante o dia falei sorrindo: "Tinha uma pedra no meio do caminho!"
        Quando estava no ensino médio, estudei sobre o modernismo e os poetas dos movimentos modernista e antropofágico na aula de literatura brasileia. Fiz um trabalho sobre o movimento antropofágico, dos quais fazia parte Carlos Drummond de Andrade, lembro-me desta poesia, e de rir com os meus amigos dela, pois não fazia a menor idéia do que ela significava, não fazia o menor sentido, para nós eram apenas palavras unidas aleatoriamente por um cara muito perturbado que acreditava ser um intelectual. Descobri que a própria crítica da época atacou Drummond por não entenderem e se recusarem a aceitar que "aquilo" fosse um poema. Peço desculpas hoje ao Sr. Drummond, esteja onde ele estive, e posso afirmar-lhe que a partir de agora esse poema faz todo o sentido pra mim, e sempre fará pois eu também nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra.

"No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra 

tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra".
                                     Carlos Drummond de Andrade

6 comentários:

Ari Florentino disse...

Lucas. è assim mesmo, nesta vida tudo tem um propósito. Gostei demais, vou repassar a todos os colegas da nossa academia e alguns acadêmicos de Campo Grande. Beijos de toda família que te ama.

Anônimo disse...

Querido Lucas

Aqui Paulo Francis. Jr da AVL, de Presidente Venceslau. Seu pai me indicou a leitura. Rapaz, que texto bem escrito. Empolgante... Cheio de informações! Lucas, já sei quem vou indicar o ano que vem para compor a Academia... A narrativa do acidente foi bem posta, bem dinâmica. Olha, digna dos grandes jornais e revistas. Olha, se fosse algo sem valor, diria também. Você não precisa nem melhorar mais. Já é bom de nascença. Continue, por favor!

Sempre que tiver algo novo, avise seu pai e ele me avisa... um abraço.

PAULO FRANCIS. JR - PRESIDENTE VENCESLAU - SP

Samuel mEDEIROS disse...

Bem, Lucas. Li seus textos, especialmente o da pedra no caminho. A escrita é bem conduzida e tem coesão textual. Prossiga.
Só um senão: tenho minhas dúvidas se Carlos Drummond de Andrade tenha participado do movimento antropofágico de 1928, coisa que veio após os modernistas de 1922. Posso estar enganado, mas você não quereria dizer Mario ou Oswaldo de Andrade?
Abraços do Samuel - Presidente da UBE de MS

Telma da Costa disse...

Muito bom, Lucas. Adorei. Adorei a história e ver que filho de peixe, peixinho é. Você escreve muito bem.
Beijos

Telma da Costa

Telma da Costa disse...

Ah, e sinto muito pela pedra no caminho. e que bom ver que você tira "água de pedra", ou texto de pedra, ou seja lá o que for, para extrair daí tantas lições básicas de vida, para te conduzir pela vida como uma bússola.
Se pararmos para observar, temos texto para escrever todo o tempo. Dia desses eu também escrevi sobre uma frase que uma amiga me disse, às vésperas de um feriado, aqui no Rio de Janeiro: "Ir ou não ir para Cabo Frio", e deu um caldo.rs.
É isso. Parabéns pelo feeling de escritor, pela sensibilidade, e pela pessoalidade que você colocou. É preciso ter coragem para isso, mas você só fará diferença se tiver coragem de se expor mesmo.
Beijos

lucas.blogger disse...

Caro Samuel, você está certo. Ao inserir a informação sobre Carlos drummond de Andrade, confiando apenas na minha memória, cometi um engano ao tratar ele (autor do Poema da Pedra) e Oswald de Andrade (precursor do movimento Antropofágico e Autor do Manifesto de Antropofagia) como se fossem a mesma pessoa. Havia percebido esse erro alguns dias depois de publicar o texto no blog. Mas após algumas rápidas pesquisas (no Google) percebi que o sentido não ficou tão prejudicado, pois, no texto me referi a Carlos Drummond como um “adepto” do Antropofagismo e não precursor, o que não deixaria de ser verdade pois o poema “Tinha uma pedra..” foi publicado na Revista de Antropofagia em 1928 (segundo fontes da internet). Mas sua observação está corretíssima, confundi realmente um com o outro.rsrs Devo mais essas desculpas ao Sr. Drummond
Obrigado e um abraço.